segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Antropologia e Globalização:

Desafios da Antropologia ( também da Religião) ante o Impacto da Globalização[1]


Há grande resistência entre os antropólogos no que tange a percepção da globalização como um evento histórico, suscetível de ser tratado como objeto de investigação. O discurso antropológico dominante procurou manter-se imune aos desafios da globalização, tendo em vista os questionamentos feitos à própria identidade da disciplina, fundamentada numa prática, a etnografia, supostamente distinta e/ou oposta à globalização. Isso se trataria, no entanto, de uma ilusão típica dos antropólogos conservadores.

Como sugerido por James Clifford, a antropologia se encontra em posição particularmente vulnerável e reveladora diante das crises contemporâneas, o que torna seus dramas disciplinares fontes privilegiadas para se compreender a globalização.

A hipótese aqui é a de que haveria um parentesco de fundo entre conservadorismo antropológico e parte considerável da literatura sobre globalização. A disputa, em geral, se situa simplesmente na questão da definição do que é determinante, se o local, o global ou alguma combinação dos dois, ou seja, estamos diante de realidades inseparáveis da própria ação humana.

Vista em termos de perspectiva, a questão da globalização exigiria uma leitura mais detida da tradição antropológica, algo que enfrentasse não apenas os desafios de um novo objeto, mas também a desnaturalização ou desconstrução de uma série de hábitos profissionais com repercussão na avaliação da própria história da disciplina, sobretudo na de algumas tendências hoje dominantes.

Como demonstrado na controvérsia entre Obeyesekere e Sahlins, há dificuldades de relacionamento de uma disciplina estabelecida, no caso a antropologia conservadora, com correntes gerais de pensamento que refletem, com menor resistência, as tendências ou o espírito da época, aqui a globalização. Obeyesekere reverbera no interior da antropologia algumas preocupações que têm sido organizadas em torno da noção de “pós-colonialismo”.  Sahlins, por sua vez, responde em nome da tradição (uma versão hegemônica) disciplinar. Contudo, mesmo não dando o braço a torcer, a antropologia avança seletiva e camufladamente, buscando não abalar os alicerces da disciplina.

Até a noção de cultura, tão associada à identidade da disciplina, tem sido discutida, sendo revista e/ou tornando-se objeto de múltiplas apropriações, provocando, assim, uma sensação de perda de monopólio (até no mercado de trabalho). Tal sensação se expressa na forma de uma demanda por ordem na disciplina.

Há, portanto, sérios desafios à antropologia na contemporaneidade. O primeiro deles diz respeito à generalização de uma sensibilidade com a qual a antropologia se identificava, a diferença. A diferença vista agora não só para localizar o outro “externo”, mas para pensar as diferenças internas às sociedades, aos grupos, aos indivíduos para muito além do que poderiam imaginar os clássicos da antropologia, quase desconstruindo, assim, por exacerbação a própria, noção de cultura.

A antropologia passa a ser contestada de um modo diferente do praticado pelo bom e velho etnocentrismo que ela acostumara a ter como adversário, sendo, agora, ela mesma acusada de etnocentrismo e de representante de um olhar externo. A antropologia, na verdade, foi transformada, em alguns círculos, em cúmplice de uma ideologia dominante e etnocêntrica. Não obstante tudo isso, porém, a tendência mais interessante no momento possivelmente não seja a de retorno a um discurso universalista, mas de um discurso oposto: o das semelhanças e das aproximações contingentesOposto também ao discurso das diferenças reificadas - que não leva às últimas conseqüências a discussão da alteridade -, contestando, assim, uma exótica da diferença. Esse discurso das semelhanças, com ênfase no contingente, não anularia a diferença, apenas a sua exótica. E estaria associado a um estranhamento que incluiria reflexivamente a nossa própria condição, movimento do pós-estruturalismo que a antropologia como disciplina jamais chegou a realizar até as ultimas conseqüências. Tratar-se-ia de um reencontro com a “humanidade” e a uma diferença que, apostando num mundo descentrado, se associaria menos à hierarquia (lugar-comum postulado pela antropologia) e mais ao diálogo e, conseqüentemente, à pesquisa de semelhanças que aproximem, mesmo na “interlocução” científica com os “objetos”.

Uma modificação lenta, desigual e sem formalização na antropologia, mas ocorrida, quiçá nos últimos quinze anos, é a que diz respeito à uma desconfiança crescente quanto à referência a totalidades fechadas, que pressuporiam relações permanentes entre suas partes e com o exterior. Isso tem se manifestado, como que em relação metonímica com a globalização, nas revisões da noção de cultural, com a demanda por concepções menos reificadas e que levem em conta uma dinâmica que inclui a sua permanente “invenção” e o poder da ação humana como geradora de cultura, contra toda impressão de imobilismo. Associado a isso há o reaparecimento de noções como hibridismo e sincretismo, sempre presentes de alguma forma em outros discursos. Há também uma ênfase crescente nos processos e nas interconexões concretas, quase como uma retomada do difusionismo, mas ganhando relevo as contingências, as negociações e os acordos entre os grupos sociais.

Tais novas tendências têm ressonância nas próprias concepções da pessoa, a qual é cada vez mais percebida como complexa, sendo abaladas as noções fixas de identidade construídas por meio de oposições.

O papel da reflexividade e da competência relativizadora na constituição e reconstituição das identidades sociais também tem sido destacado. A relação entre “social” e “cultural” tem igualmente estado sujeita à revisão.

Alterações dessa natureza podem e têm sido explicadas em termos de avanço do conhecimento e de aperfeiçoamentos metodológicos, produtos da própria pratica da pesquisa. Essa, então, e não sua rejeição, parece ser a nova linha de defesa disciplinar. Isso advêm da idéia de que estamos diante de tendências que atravessam diferentes domínios, disciplinas e, quiçá, sobretudo a consciência comum, em complexa inter-relação.

Sobre essa consciência comum, temos o exemplo da pentecostalização, a qual, distante de uma tendência fundamentalista, se utiliza da oposição entre as figuras de Deus e do Diabo como veiculo e operador, através do neopentecostalismo, de uma espécie de troca que busca desfazer outros dualismos, sem culpas. O propósito desse dualismo não maniqueísta, mas utilitário, é reconciliar o antes irreconciliável no pentecostalismo, a saber, os dois mundos incomunicáveis, o do aqui e agora e o da salvação futura e metafísica. É aqui e assim que o terreno das contingências, do aqui e agora e do cotidiano ganha centralidade. A clássica oposição entre religiosidades de possessão (em que o tempo se identifica com um eterno presente) e religiosidades messiânicas (de redenção e salvação) é reconciliada. Tal empresta nova dignidade à ênfase na prosperidade, essa como sinal de libertação, a qual, por sua vez, se confunde com a legitimação da fruição dos bens mundanos, indicativo também de uma aproximação entre o humano e o divino, outro dualismo posto em questão.  A questão não é mais sobre obra e graça, isto é, sobre salvação, mas sobre a busca de uma nova linguagem religiosa que afirme e dê sentido a isso através da reapropriação, resultado do descolamento e autonomização da prática mundana. A quase total ausência de uma teologia no sentido estrito não prejudica transformações que uma perspectiva culturalista fixista e isolacionista não imaginaria como desdobramentos possíveis da narrativa cristã. Essas transformações possivelmente estão em relação oculta “sincrética” com outras tradições, inclusive orientais, por via da crença no poder do pensamento, e seu desdobramento no poder da palavra, que no Brasil encontrou terreno fértil para se desenvolver. Isso lhe emprestaria surpreendente parentesco com a “Nova Era” e com a literatura dita “esotérica” e a de auto-ajuda.

Hermeneuticamente, em nenhum desses casos é possível detectar uma razão interna que tornasse necessária essa convergência. No caso do pentecostalismo, por exemplo, sua presença inicial caracterizava-se pelo ascetismo e pela desvalorização do mundo, exatamente o oposto do que vem se revelando agora. É como se, de fato, estivéssemos diante de uma ampla e potencialmente “global” situação dialógica, mas que para ser plenamente entendida, e não banalizada nem esvaziada de sentido, precisaria ser posta no contexto de um pano de fundo de desejo de semelhança, presente e mediador até na constituição das diferenças, que, se não anula, faz um reparo às energias postas na dimensão do “interno”, reificada na definição moderna de “domínios” e, mesmo, “culturas”.

Alphonse Dupront (1993), no contexto católico, sugeriu que estamos hoje diante de uma corrosão da cultura cristã (uma descristianização) que impede a transmissão da mensagem religiosa por via da tradição. Diante dessa constatação, o movimento pentecostal e o carismático se imporiam: a volta do Espírito como sinal dos tempos, ultrapassando os limites de uma racionalidade estabelecida. Reinterpretando a idéia de Dupront de quebra da tradição no sentido posto pela literatura atual sobre destradicionalização, podemos dizer que essa se identificaria menos com a quebra da tradição e mais com a reflexividade e conseqüente perda de alinhamento automático com a tradição, o que seria aparentemente próprio de uma hermenêutica, que interrompe o pertencimento ao mundo por tradição a fim de significar (Ricoeur,1995). Poderíamos, então, associar essa “pentecostalização” a outros elementos ligados à destradicionalização, como a ênfase no presente, nas diferenças, na experimentação, no indivíduo e na ruptura com a noção de representação.

Niklas Luhmann e alguns sociólogos da religião como Bryan Wilson, Peter Beyer, etc. falam de uma mudança nas “funções” da religião, mudança oculta ao antropólogo, quiçá, por sua típica ilusão, ele o campeão das contextualizações.

No campo religioso, a outra face da pentecostalização poderia ser, como já indicado, uma generalizada “desteologização” que não se restringiria aos grupos ditos pentecostais. Mas na verdade, até dentro do espírito de Pentecostes — “o Espírito sopra onde quer” — a pentecostalização poderia por sua vez ser aproximada de outras experiências afetivas fortes, como as associadas em geral aos “estados alterados de consciência” e à “libertação”. Libertação, aliás, também comprometida com outro elemento — a ênfase pragmática nos resultados — que parece substituir a ênfase clássica na conversão, na mesma medida em que as manifestações substituem os argumentos.

Não se pode negar que a ênfase material e simbólica na questão do dinheiro ao mesmo tempo corresponde e produz uma ênfase e uma linguagem dos nossos tempos, como também a utilização plena dos recursos da mídia e das expressões musicais disponíveis.

A globalização, sem ser sinônimo de totalidade, ocuparia a sua posição como o novo nome do desenvolvimento e da modernização que se querem universais.
A globalização, evidentemente, tem de estar sujeita a outros tratamentos além do que está sendo proposto aqui, cuja função seria a de chamar a atenção para um pano de fundo do qual se supõe que o reconhecimento tenha conseqüências.



[1] Resumo e/ou recortes que fiz em VELHO,Otávio.Globalização: Antropologia e Religião. Rio de janeiro. MANA 3(1):133-154,1997.